Novas interpretações sobre a sociedade e economia nos séculos XVI ao XIX:

A participação das mulheres cativas na economia escravista e nas primeiras décadas do pós-emancipação.

Anna Cáritas Oliveira Silva de Souza e Anna Clara de Souza Lopes[1]

Resumo: Este artigo objetiva discutir a questão da mulher negra no brasil colonial e durante a pós-emancipação, a partir das especificidades da relação de gênero e raça. Analisando as contribuições dessas mulheres na economia e apresentando uma nova abordagem como aliada para a desconstrução dos estigmas associados as mulheres negras e como um manifesto de luta por direitos políticos e sociais.

PALAVRAS-CHAVE: mulher negra; escravidão; liberdade.

Abstract: This article aims to discuss the issue of black women in colonial Brazil and during the post-emancipation period, based on the specificities of the relationship between gender and race. Analyzing the contributions of these women in the economy and presenting a new approach as an ally for the deconstruction of stigmas associated with black women and as a manifesto of struggle for political and social rights.

KEYWORDS: black woman; slavery; freedom.

  1. Introdução

Nas últimas décadas, os estudos sobre a escravidão se consolidaram na vasta historiografia sobre o Brasil colonial e pós-colonial. A amplitude nas abordagens e a diversidade na utilização de fontes são algumas das principais características dessa mudança historiográfica.

Até 1960 a escravidão era mencionada de modo genérico. Tempos depois as abordagens sistêmicas sobre o escravismo perderam espaço para analises das experiências dos povos negros. O debate sobre escravidão, surgiu com um vigor renovado, porém por muitos anos até os dias mais recentes, é evidente a ausência de produções acadêmicas e literárias dedicadas exclusivamente à questão das mulheres negras escravizadas e libertas.

As pesquisas e estudos científicos sobre as alforrias, quilombos, irmandades, revoltas, senzalas etc., passaram a investigar rigorosamente o imaginário, os discursos e a cultura material dos principais protagonistas negros da sociedade escravista. Entre os temas que surgiram, esse trabalho busca evidenciar um ainda pouco explorado: a experiência da mulher negra no Brasil colonial e no pós-abolição.

Em meio a toda essa atividade intelectual, a situação especifica da mulher escravizada permanecia incompreendida. As discussões constantes sobre a “promiscuidade sexual” ou sobre seus pendores “matriarcais” obscureciam mais do que iluminavam a situação das mulheres negras durante a escravidão, negligenciando a contribuição do seu trabalho no desenvolvimento econômico da época e, sobretudo suas lutas e resistências.

Vivemos atualmente, no Brasil, um momento em que apresenta diversidade nos debates sobre as relações raciais e de gênero, acalorada não só pelas questões que abarcam as políticas de inclusão nas universidades, mas também, pelos próprios movimentos sociais. Muitos desses debates que ocorrem no âmbito acadêmico, tendem em transmitir argumentos pretensamente falaciosos, promovidos por influentes grupos contrários às ações afirmativas. No esforço de influenciar a opinião pública, os agentes desses argumentos deviam a atenção para uma falsa polêmica quando alega que as políticas de inclusão dispensam ou menosprezam a melhoria da qualidade do ensino público.

O melhor ponto de vista que nos proporcionam as políticas de inclusão, é o ganho da diversidade, que beneficia a todos: enriquece a convivência e abre novas janelas de percepção, sensibilidade e subjetividade no âmbito acadêmico. Formar novos autores do discurso acadêmico significa desafiar o privilégio exclusivo nos campos de conhecimento exercitado desde sempre por uma elite minoritária, assim abrem-se perspectivas para as transformações sociais.

Isso é um reflexo de uma sociedade que avança na conquista de direitos, mas por outro lado se mantém prejudicada pelo progresso de regimes excludentes. Obtivemos avanços no cenário acadêmico? Sim, muitos! Porém, não o suficiente para destruir as mazelas deixadas pela escravidão e pela abolição incompleta. Com isso, surgem novas perguntas, indagações e proposições, sobretudo no que diz respeito à busca de visibilidade político-social e melhores condições de vida para a população negra.

  1. Caracterização do trabalho das mulheres negras escravizadas no período colonial

A escravidão, mesmo após o fim do Império romano, se reinventou na Europa. No século XIV e XV, ela se tornou uma parte fundamental na estrutura da economia, visando primeiramente na adesão de escravizados em tarefas agrárias como a produção de açúcar nas ilhas atlânticas orientais. E no século XVI, nas colônias americanas, estimuladas pela Coroa portuguesa afim de abastecer o mercado por toda Europa.

Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro em seu livro O Trato dos Viventes, o Brasil recebeu incentivos fiscais para estimular o processo produtivo de açúcar, pau-brasil e algodão, assim como para a edificação de engenhos permitindo a compra de africanos pagando baixas taxas, sendo possível estabelecer o sistema escravista. Diferentemente do território africano, que mesmo estando perto do reino português apresentava problemas locais como: a falta de lenha e má qualidade da cana de açúcar, além de ter um circuito de trocas na contramão, sendo impossível realizar a empreitada do desenvolvimento deste sistema.

Após um século de contato entre portugueses com os trópicos, mais precisamente no ano de 1532, a sociedade brasileira começa a se estruturar civil e economicamente. As atividades econômicas são modificadas, deixando de meramente mercantis e passando a ser também agrícolas. Gilberto Freyre em seu livro Casa Grande e Senzala diz que:

Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização portuguesa do fácil, mercantil para o agrícola; organizada a sociedade colonial sobre base mais sólida e em condições mais estáveis que na Índia o nas feitorias africana, no Brasil é que se realizaria a prova definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada assim à cultura econômica social do invasor. (p.65)

É importante ressaltar que o contexto da colonização nas Américas não se consolidou de forma homogênea, apresentando modelos diferentes, existindo diversas maneiras de como homens e mulheres escravizados foram tratados. Em destaque às condições de escravizados no período colonial, mulheres negras eram alvo de abusos constantes, como por exemplo: jornadas excessivas de trabalho, objetificação e violações dos seus corpos entre outros.

Nas pesquisas sobre a escravidão, ainda é comum notar que alguns historiadores utilizam o termo “escravo” de forma geral, como se este fosse isento de gênero e sexo e a sua condição de escravizado determinasse sua identidade.

As mulheres negras neste período eram submetidas ao serviço doméstico desde a infância até a terceira idade. Além de serem servidoras domesticas executavam diversas tarefas nos espaços em que trabalhavam, fossem eles no interior das residências ou até mesmo em alguns estabelecimentos de comércio e de prestação de serviço (como cafés, casas de pastos, padarias, hotéis, hospedarias, estalagens, etc.)

Existiam criadas que executavam atividades que se localizavam entre os limites das residências e dos espaços exteriores como no caso das lavadeiras, engomadeiras, passadeiras, amas de leite, carregadoras de água, das criadas que vendiam produtos ou faziam compras e, até mesmo de algumas costureiras e bordadeiras. De modo geral, esses serviçais, trabalhavam tanto no âmbito da casa dos senhores ou patrões como também tinham necessidades de sair às ruas para realização das tarefas que lhes eram designadas. Dessa forma, podemos verificar que a maior parte delas circulavam por espaços públicos como ruas, mercados e chafarizes.

  1. A participação da mulher negra no processo de emancipação

A vida da exaltada Francisca da Silva de Oliveira, ex-escravizada, filha de uma negra da Costa da Mina e de um homem branco, ilustra os caminhos da liberdade seguidos por centenas de outras mulheres. Chica viveu, ao lado do endinheirado contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com “ares de um matrimônio estável, mas não legal”, por 17 anos, afirma Júnia Furtado (2003, p.119).

Júnia ainda sintetiza: ao contrário do que se passava com os homens de cor, para quem era sempre difícil obter ganhos extras a fim de comprar a liberdade, “as negras de ganho, uma vez que tinham acesso a um pecúlio, e as escravizadas que viviam em concubinato com homens brancos ricos tinham maiores chances de serem alforriadas.

E como Francisca havia milhares de ex-escravizadas que se reivindicavam e procuravam meios para se libertar da violenta escravidão. O sexo era determinante nas condições de alforria. A carta de alforria era um ato comercial, raramente um ato de bondade. Sobre essa questão Katia Mattoso em seu livro Ser escravo no Brasil, salienta:

Os mecanismos das alforrias nos permitem compreender as relações sutis estabelecidas entre senhores e escravos? É provável que, ao desmontar os mecanismos da passagem da escravidão para a liberdade, tenhamos condições de apreender em que se constitui a trama do “ser escravo”. O “ser livre” era um estado que só existia em relação ao “ser escravo”; era a conquista da experiência vivida de escravo. Uma experiência longa, muito banal e semelhante à experiência daqueles a quem a sorte não conduziria a esse ato de liberdade: a alforria conquistada ou apropriada, recebida com alegria ou aceita com o sentimento de ameaça.

No trabalho escravo as mulheres negras experimentaram a equidade com os homens, na produção, na força, nos castigos, muitas das quais seguidas de morte, predominando múltiplas violências às mulheres através da sexualidade. Contudo, esse estudo distingue algo que se opõe a diversos trabalhos sobre a temática – a não submissão dos/as escravizados/as, durante e na pós-abolição, e aponta como marco o movimento antiescravista, o qual originou o feminismo negro, apesar da inclusão de mulheres brancas nestes movimentos (DAVIS, 2016p. 47).

Estudos acadêmicos voltados para o período do pós-emancipação buscam mostrar uma perspectiva a partir do “escravo liberto”, todavia muitos deles ainda precisam ser feitos para desvelar as dimensões ainda ocultas dentro das complexas possibilidades que ocorriam na vida cotidiana.

Há algum tempo as cicatrizes de uma luta sangrenta, começou a revigorar. As discussões sobre o amor entre negros e brancos, tem tomado direções diversas. Frantz Fanon em seu livro Pele negras máscaras brancas, trata sobre a questão de determinar um limite no amor autêntico entre brancos e negros, contribuindo para que esse amor permaneça impossível enquanto não for eliminado o sentimento de inferioridade:

Para nós nenhum equivoco é possível: Je suis Martiniquaise é uma obra barata, que preconiza um comportamento doentio. Mayotte ama um branco do qual aceita tudo. Ele é o seu senhor. Dele ela não reclama nada, não exige nada, senão um pouco de brancura na vida. (p.54)

A partir dessa, nota-se que a inferioridade que norteia a vida das mulheres negras é marcada historicamente como uma inferioridade econômica. Uma inserção na alta sociedade significa uma transformação na vida, uma redução relevante no estigma da cor.

No entanto, pensar na liberdade era algo revolucionário. Mulheres negras como Luísa Mahin, impulsionam os estudos sobre a liberdade durante e no pós-abolição. A análise das condições sociais a que as mulheres negras estavam submetidas revela um percurso de resistência em relação à sociedade escravista que ainda se mostrava dominante no que se refere as formas de opressão ao gênero, classe e raça.

Quando o oficio destinado à mulher negra desencadeavam as relações de gênero e raça no passado escravista – entre a imagem da mucama e a suposta passividade sexual –, nas primeiras décadas da abolição, pairam a estigmatização e a erotização do corpo da mulher negra. Hoje, temos indicadores sociais que revelam as desigualdades no mercado de trabalho e o predomínio feminino na chefia dos domicílios, com seus muitos outros silêncios.

Os questionamentos sobre as experiências das mulheres negras nas comunidades de escravizados e nas primeiras décadas do pós-emancipação no Brasil continuam ausentes, protegendo as exceções que ressaltamos nesta comunicação também discutidas em outros textos que nos serviram como base para este artigo.

  1. Considerações Finais

O processo de escravidão marcou gravemente a vida das mulheres, que foram negligenciadas por uma sociedade patriarcal, racista, e discriminatória socialmente. A história dessas mulheres revela uma luta ininterrupta por justiça, liberdade e igualdade. Apresentando a necessidade de estabelecer uma identidade distinta daquela construída pela escravidão.

Observamos que ainda hoje existe a permanência do discurso machista e racista nas reproduções nos âmbitos acadêmicos, além de outros na sociedade. A marginalização desses sujeitos nos remete à importância de estudos sobre esses homens e mulheres que viveram e ainda vivem com a negligência e a discriminação. Por isso a necessidade de incluir na historiografia acadêmica textos que tratam dessas experiências como forma de levantar questões e trazer soluções para essas problemáticas.

O pós-abolição mostra um momento de resistência diante de vários preconceitos, homens e mulheres que lutaram contra um sistema que os subjugavam, onde não tinham visibilidade. A antiga escravidão apenas ganhou um novo formato: a marginalização, o aumento da criminalidade, do desemprego, a falta de acesso à educação, à saúde de qualidade, que se tornaram parte crucial para a manutenção desse passado cruel. O gênero, a cor e a classe eram condições determinantes para a exclusão ainda maior vivenciada pelas mulheres da época. Porém, a população negra, em especial a mulher negra se reinventou e ocupa hoje um lugar social que transformará a sociedade através da sua força ancestral acumulada através dos tempos e espaços.

Referências

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O tratado dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo. Companhia das Letras, 2000.

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Organização de Frank Barat; tradução de Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008. P. 194.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Atual, 2002.

FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil: século XVI – XIX; tradução de Sonia Furhmann. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Sele Negro, 2009.

XAVIER, Giovana. FARIAS, Juliana Barreto. GOMES, Flávio. Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro. Acesso em: 18 jan. 2024, 2012.

Anna Cáritas Oliveira Silva de Souza e Anna Clara de Souza Lopes

Graduandas de Licenciatura plena em História 2017.2 da Universidade do Estado da Bahia (UNEB-CAMPUS II), apresentam artigo para o Componente Curricular Historiografia do Brasil Colônia, sob orientação da Professora/Mestra Hélida S. Conceição.

Artigo abaixo :

Artigo19

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